1.11.10

Carta ao Pai

Pai, permita-me fazer algumas considerações sobre nós dois. Espero que não se ofendas mas sim rias da situação que lhe apresento. De início gostaria de destacar algumas singularidades físicas que atualmente nos envolvem. Hoje tu tens o dobro da minha idade. Oitenta. Por outro lado, pesas aproximadamente metade do meu peso. Quarenta e sete. Tu és imberbe enquanto eu, a cada dia que passa, vejo-me ficando cada vez mais peludo...
Tudo isso parece meio engraçado, mas acredito que, de certo modo, reflita duas personalidades bastante distintas. Contudo, invejo-te. Tu és simpático, polido, nobre, erudito, falas em tom baixo porém claro, cantarolas em francês. Eu não. Sou rude, impulsivo e tenho baixa tolerância às frustações, minha dicção é desagradável, e ainda, invariavelmente, afasto-me das pessoas que mais quero bem.
Mas tudo isso não é o que eu mais invejo em ti. Acho que te admiro mais devido a forma como tu me criaste. Tu sempre manteves uma distância hierárquica entre nós. Vivias em seu gabinete e só intervinhas nas questões domésticas quando eu aprontava e minha mãe o solicitava. Vinhas, não perguntavas por que, batias e ias embora. Fácil, cara! Blitzkrieg. Sempre que me indispunha contigo, sofria de arrependimento. Temor reverencial, outros tempos, diferença de idade, não sei dizer... O fato é que meus filhos, sendo bem mais próximos de mim, tanto na convivência quanto em matéria de idade, tratam-me com bastante informalismo, chegando mesmo a confundir-me se o pai sou mesmo eu ou se a autoridade já não significa mais muita coisa.
Não penses que sou revoltado contigo. Deixe-me explicar melhor os meus sentimentos. Vejo que para ti a criação dos filhos era algo muito menos envolvente ou desgastante do que é para mim. Tu foras criado no modelo secularizado, ou melhor, milenarizado, de família-unidade-de-produção. Não tivestes infância. Ao contrário, trabalhavas para o meu avô a troco de reconhecimento e respeito. Não ficavas com o dinheiro do seu labor. Por ser o mais velho varão, sempre foste o arrimo de todos. Eu não. Nasci quando já tinhas quarenta. Não precisei trabalhar enquanto criança. Minhas obrigações limitavam-se à vida escolar. Hoje, preocupo-me demasiadamente com o futuro dos meus filhos. O que estarão fazendo? O que pensam sobre o amanhã? Será que eles ainda serão dependentes por muito tempo? Tu nem cogitarias tais questões. Fizestes a tua parte. Pagaste meus estudos, me alimentaste, e me deste alguns conselhos. Segui-os, em parte. Trato meus filhos mais de perto. Exijo-lhes atitude e respeito. Mostro-lhes que a vida pode ser boa se fizerem por onde...
Pai, somos vizinhos. Sempre que precisas de mim, procuro acompanhá-lo e auxiliá-lo nas questões... Fico pensando se serei longevo como ti. Acho que não. Ser idoso não é para qualquer pessoa. Tu enfrentas com bravura a tua condição. Lutas para não esmorecer diante da vida. Procuras ocupar-te com estudos e outros afazeres. Vais driblando o tempo como quem arma uma jogada ensaiada no meio-de-campo. Eu não tenho tanta paciência assim. Esperar mais o quê? A vida é tediosa demais! Aprende-se pouco, muda-se menos ainda. Tudo é ilusório. Não posso crer que seja possível em uma simples existência elevar o espírito a patamares mais etéreos, de consciência livre.
Talvez eu ainda não esteja em condição de compreender... Esta sim parece ser uma boa crença. De qualquer forma, carrego comigo o teu exemplo. Na dúvida, observar o que já funcionou antes tem ajudado.
Como podes perceber, não se trata de uma missiva kafkiana, carregada de dissabores e lamentos. Tu foste um ótimo pai. Sei que também sou, mas, por via das dúvidas, não perguntes para os meninos...