13.4.12

Um encontro inimaginável

Era o meu primeiro dia como garçon naquele restaurante. A noite prometia, pois haveria ali um inimaginável encontro entre seis grandes pensadores dos séculos XIX e XX, para tratar do assunto fenômeno religioso e o seu papel na sociedade ocidental.
O primeiro convidado a chegar foi Karl Marx. Logo em seguida Sigmund Freud. Entreolharam-se. Freud apertou bem os olhos para ver se não estava diante do totem. Por fim, reconheceu Marx pela barba e, embora fosse lugar comum pensar em Marx como devorador de criancinhas, Freud livrou-se das suas ilusões eliminando assim o tabu. Cumprimentaram-se e tomaram assento à mesa reservada. 
Émile Durkheim adentrou o recinto e procurou por Auguste Comte, mas este infelizmente não tinha sido convidado. Tudo bem, no restaurante havia mesmo uma bandeira onde se lia a frase  “Ordem e Progresso”. Então, antes de sentar-se ao lado dos colegas, observou o vazio lógico procurando em vão distinguir qual dentre os senhores era o sagrado e qual o profano. Era preciso estabelecer uma separção. Sem obter uma resposta cientificamente válida, folgou pois afinal de contas estava protagonizando um fato social de caráter religioso, ao qual, segundo ele mesmo, deveria submeter-se. 
O próximo a chegar foi Max Weber. Aparentava um certo desconforto, talvez por influência de Calvino, que não gostava de festas. Contudo, a dúvida de sempre era visível no seu semblante puritano: O que devemos fazer e como devemos viver?
Leonardo Boff, primeiro brasileiro a ser convidado para o encontro, apareceu causando espanto. Ora, se Karl Max foi o primeiro a chegar, como ele poderia estar novamente ali na porta? Calma. Se lhes confundiram as barbas...
Boff, espirituoso, autorizou os demais a chamarem-no de águia e, por delicadeza, não sugeriu nenhum apelido para Marx...
Por último, mais um convidado brasileiro. Frei Betto. Agora sim a mesa estava completa e eu estava lá, pronto para servi-los.
Marx me fez um sinal. Aproximei-me. 
- Pois não? O que o senhor deseja?
Ele me pediu para mudar de lugar na mesa. Disse que a proximidade com Durkheim e Weber falseava a sua consciência, em outras palavras, era alienante, e que a postura submissa de ambos ante o fenômeno religioso o incomodava, pois este não passava de um disfarce para encobrir as relações de dominação da classe proprietária dos fatores de produção. Confesso que nada entendi. Depois ele pediu uma cerveja – a mais barata da casa, aquela sem rótulo, autêntica bebida de operário... Sabe como é, sem fetiches... O cara é radical!
Em seguida Freud fez uso da palavra:
- Caros colegas, para início de conversa permitam-me dizer que isso aí que vocês chamam de religião não passa de ilusão: uma neurose obsessiva universal que remonta à horda primitiva. E mais, dentro do Complexo de Édipo, Deus não é mais do que um pai glorificado, cujos filhos jamais superaram o sentimento de culpa gerado pelo parricídio!
Imediatamente Durkheim interveio:
- Data vênia vossa senhoria ser a maior autoridade do mundo em psicanálise, é preciso reconhecer a importância da religião como fator de coesão da sociedade, a verdadeira fonte do sagrado.
- Está bem, caro Durkheim, reconheço a importância da religião para a humanidade, mas por favor, não vá se suicidar por isso não! Vamos ficar apenas com as formas elementares da vida religiosa, ok?
Depois da resposta, lembrou-se de fazer o seu pedido: 
- Ah! Garçon! Traga-me uma vodka...
Max Weber sentiu a deixa...
- Nobres colegas, é mister fazer uma colocação quanto ao fenômeno religioso no ocidente. Em primeiro lugar não observo nas religiões cristãs uma gênese a partir das perspectivas de categorias sociais, como defendeu o professor Karl Marx, nem tampouco a partir da excessiva importância conferida à coletividade, como frisou o Dr. Émile Durkheim. Eu o vejo como um produto histórico, desenvolvido pelo próprio indivíduo, pois tanto a vida quanto a morte não têm sentido... Em síntese, a ciência nada pode afirmar acerca da religião, mas pode levar o indivíduo a melhores condições de vida neste mundo desencantado.
Marx indignou-se e Frei Betto, sempre polido, esperou a contestação do velho mestre nesta lide de conterrâneos. Disse Marx:
- Lá vem o senhor com esse papo de burguês para operário trabalhar além da jornada de 16 horas diárias... Eu já não te disse que a religião é o ópio do povo? Que é ideologia capitalista?!?!
Rapidamente pensou Freud:
- Ópio? Onde?
Marx continou...
- Não vê o senhor que está restringindo o indivíduo ao capitalista única e exclusivamente e deixando de fora o miserável operário? Com toda essa desigualdade, essa competitividade, é claro que a vida não tem sentido! Abaixo a mais valia! Garçons, psicanalistas, sociólogos, teólogos e escritores de todos os tempos uni-vos! É chegada a hora de acabarmos de vez com todas essas formas de alienação e ingressarmos definitivamente na idade da razão...
Pediu mais uma cerveja. Aquela... Weber quis apenas um copo d’água e, considerando de acordo com o espírito do capitalismo que eu não era um dos escolhidos, disse-me para não demorar. Rigidez...
Até então Leonardo Boff, que degustava um vinho tinto e limitava-se apenas a escutar os demais, resolveu falar: 
- Irmãos: Como todos vocês sabem eu professo a fé cristã. Sendo assim, pacientemente  escutei os vossos argumentos. Meditei bastante acerca das colocações do ilustre sociólogo Max Weber e, no afã de afastar-lhe o crônico pessimismo, sugiro que o mesmo passe uma temporada conhecendo a América Latina e seus problemas. Tenho a convicção de que a opressão que assola os nossos povos irmãos, absolutamente desfavorecidos, irá proporcionar-lhe uma reflexão capaz de levá-lo à revisão da sua opção pelos ricos.
E continuou o nosso teólogo:
- Muito embora os ilustres Karl Marx e Sigmund Freud se apresentem como ateus, eu não poderia deixar aqui de referendar algumas de suas principais posições. Sob o ponto de vista da Teologia da Libertação, as estruturas de dependência e de dominação secularizadas pelos ricos vão de encontro ao ideário de liberdade ensinado por Jesus Cristo. Os processos de alienção/ilusão que conduzem os indivíduos e a sociedade à superficialidade do consumo e do entretenimento correspondem inversamente à tomada de consciência da realidade que nos cerca. Isto sim, meus caros, é sagrado. É o instinto divino, a voz interior que leva o indivíduo ao encontro consigo mesmo, ou, como diria Freud, com o Self.
Na mesa, todos permaneciam perplexos e em silêncio. Eu continuava não entendendo nada, mas fiquei emocionado ao ver aqueles anciãos discutindo questões cujo objeto principal era o próprio ser-humano. Frei Betto me pediu para trazer-lhe o mesmo vinho tinto que o Leonardo Boff estava tomando. Não hesitei... 
Cordialmente Frei Betto quebrou o silêncio:
- Fica difícil acrescentar qualquer coisa depois desse puxão de orelhas do Leonardo Boff, mas, humildemente, quero levantar outra questão dentro do que se está chamando aqui de fenômeno religioso na sociedade ocidental.
Karl Marx sorriu discretamente. Pensou: Claro que o Frei Betto estava se referindo à pós-moderna religião do consumo...
- Não é do tempo da maioria dos senhores, mas já observaram a semelhaça entre um shopping-center e uma catedral? Notaram como lá as pessoas se vestem bem? Seus trajes se parecem ou não com os dominicais? E quanto à miséria? Por acaso lá se vêem os mendigos?
Max Weber tentou fazer um aparte mas faltou-lhe o que dizer. Então Frei Betto continou:
- Nesta “nova religião”, egoísta, há uma inversão de papéis e de valores. O indivíduo é que é propriedade do objeto e não o contrário, como deveria ser, segundo a tradição. Não é a fé algo subjetivo? Como é possível um objeto de consumo, que agora é o possuidor do indivíduo, vir a acreditar num ser-humano carente de auto-estima?
Dirigiu-se para Max Weber e disse:
- É exatamente por isso que a vida não tem sentido.
Embargado, Max Weber pediu mais um copo d’água e Durkheim, percebendo que o clima estava ficando meio difícil para o alemão, sugeriu a este ir conhecer o shopping-center mais próximo, só para relaxar. Marx disse que não iria de jeito nenhum e Freud perguntou se no shopping haviam tantas pessoas neuróticas quanto naquela mesa.
Foram embora. Numa clara manifestação de apreço à classe operária, pagaram a conta em Euro, mas me deixaram com a mesma incerteza de antes. Seriam estas questões difíceis demais para a compreensão de um simples garçon ou bastaria apenas a prática do amor ensinado pelo singelo Jesus Cristo para encontrar um sentido para a vida?





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